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A arte de encarar a morte com meia cara - Reflexão de Michel Crayon

A arte de encarar a morte com meia cara - Reflexão de Michel Crayon

 

Esta frase, que funciona como título, foi recolhida de um escritor que me marcou na minha adolescência, José Rodrigues Miguéis, «Um homem sorri à morte com meia cara» tem o que se lhe diga e tenho pensado nela muito independentemente do sentido que lhe é dado por este.
Primeiro penso que o homem não sorri à morte nem com meia cara nem com a cara toda: a morte, por natureza é inopinada, acontece quando acontece e por mais optimista que se seja quanto às vantagens do além em relação ao aquém parto do princípio que ninguém quer partir daqui , por mais berucha que seja esta treta, e para mais com um sorriso, seja ele de meia cara ou de cara toda.

 

Porque há outro factor a ter em conta: para além de ser inopinada, a morte, é uma coisa solene. Ninguém brinca com a morte quando está a morrer, mesmo sem o saber e se alguém joga ainda algumas piadas sobre a coisa é porque está convencido que não vai, desta ou daquela, fazer tijolo.

 

Por princípio, os outros, é que podem morrer: o adjectivante da morte supera o sujeito em calculada eminência mortal e faz uma piada sobre a coisa, diz meia dúzia de banalidades, assegura ao outro que esse outro não vai morrer e depois vem cá para fora com um trejeito que diz a toda a gente que pensa mesmo que esse outro «está a ir» sem calcular, como mandam as boas práticas, que ele e qualquer um dos presentes na sala podem cair para o lado de um momento para o outro.

 

Por isso, sendo a morte uma coisa solene, o que se faz, normalmente é afastar de nós a ideia dessa possibilidade nos poder atingir de rompante, e, no fundo, pelo que conheço de funerais e outros cerimoniais, quando se vela o morto faz-se um contraponto utilizando uma sublimante mas não efusiva elegia à vida (a nossa, que ficou). Respeita-se o morto mas cumprimenta-se com efusão interiorizada a nossa vida.

 

Quem ri da morte, com a cara toda ou com meia cara, é, pois, sempre aquele que pensa que não vai morrer, pelo menos imediatamente. Faz assim um género de totoloto mental, coloca as suas possibilidades de morrer breve numa aposta simples (daquelas que se sabe que não ganham nunca) e encara a morte do outro, e não vamos meter-nos em antropologias baratas, mas a coisa funciona como se a morte do outro que jaz lhe multiplicasse as hipóteses de se manter vivo. Por isso ri da morte, sim, até com a cara toda, pudera, que isto de ser pobre de espírito tem as suas vantagens.

 

Fica pois sempre bem dizer umas larachas sobre a possibilidade da nossa morte, demonstrando-se assim que se não tem medo da morte, mas como é evidente o cagaço é tanto que essa possibilidade tem de ser sublimada da ingénua (para não dizer parva) forma acima descrita ou de outra mais elaborada contando com factores estatísticos tais como a «saúde de ferro» e o facto dos seus antepassados terem morrido todos já centenários ou quase.

 

Há pessoas até que se queixam de não terem sido consultadas sobre o seu nascimento, caso de Cioran, por exemplo, e que consideram que a vida que levam resulta disso mesmo, do facto de não terem optado (entre o nascer e o não nascer) e estarem assim condenados a viver.

 

Leia este tema completo a partir de 13/06/2011

 

 

 



13/06/2011
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