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Coluna de Manuel Fragata de Morais - A prece dos mal amados - CAPITULO QUATRO - O FUSCO DO ESPELHO

 

 

Coluna de Manuel Fragata de Morais - A prece dos mal amados - CAPITULO QUATRO - O FUSCO DO ESPELHO

 

Vá, Gravoche. Rouba uma estrela do céu.

Quando o sol fechar os olhos, tu roubas a mais bela.

(António de Almeida Santos)
 


Eram seis e meia da manhã quando despertou do sono meio dormido, ao som da voz da hospedeira a anunciar que em breve momentos aterrariam no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, em Luanda. Atirou com a manta para o chão e, sem levar as costas da cadeira à vertical, olhou pela janela, ansiosa. A companheira de viagem, notou o nervosismo de Nazamba e sorriu. Apresentara-se como Lucinda do Nascimento ao chocarem uma com a outra no free shop do aeroporto de Lisboa e pronto entabularam conversa, numa empatia mútua. Lucinda insistira que se o avião da nacional fosse vazio, solicitaria permissão ao comandante, seu primo, para que viesse para a primeira classe fazer-lhe companhia.

 

- Tem medo da aterrissagem?
- Não, é que já não venho a Angola há muito tempo.
- Há muitos anos?
- Sim, há quinze. Saí daqui miúda, em 75.
- Então vai encontrar um outro país, espero que esteja preparada.

Estar preparada? Claro que estou, seja o que Deus quiser...

Não fazia a mínima ideia do que iria encontrar, o que ouvira e vira nas televisões não servia de padrão, sabia que a informação portuguesa sempre fora contra os donos do poder em Angola, a pérola da coroa ainda não tinha sido tragada, infelizmente tanto de um lado quanto do outro, por razões certamente diferentes mas que concorriam para esse relacionamento de amor - ódio mútuo.

Vira os angolanos a regalarem-se com o bom bacalhau, como se se deleitassem com um prato de funji, observara-os, curiosa, a verterem o tinto para os buchos sempre ressequidos, tanto o das tascas quanto o do mais caro nos restaurantes. Vira-os, muitos anos depois, afirmarem serem do Benfica, do Sporting ou de qualquer outro clube, com tanta paixão quanta a dos portugueses, que não faziam a mínima ideia do nome de um único clube angolano.

 

Preparada, claro que tinha que estar, só que não sabia como, não era um penteado que se produzia diante um espelho, risco ao lado, ao centro ou à esquerda, cabelo curto ou à afro. Pensara que sim, estava preparada para o que desse e viesse, agora mal se controlava, sentia vontade de vomitar, tão aflita se via.

 

Tenho que ser forte, tenho que ser forte!

- É que não sei se está efectivamente alguém à minha espera.
- Não tem família? – perguntou espantada Lucinda.
- A minha mãe vive no interior e nem sabe que estou de regresso, nunca mais nos contactámos, perdemo-nos uma da outra, com a guerra. Espero que o meu irmão esteja no aeroporto e que me reconheça, eu que nem dele me lembro... – disse a meia - verdade.
- E se não estiver, o que vai fazer?
- Tenho uns dois telefones de amigos de amigos meus em Portugal, estão avisados. Assim que desembarcar, telefono-lhes, pois não conheço Luanda

 

Lucinda riu e afagou-lhe a mão para a tranquilizar.
Coitada, pensa que vai encontrar telefones a funcionar no aeroporto, ou táxis.

- Deixe lá, não se preocupe. Se não tiver ninguém à sua espera vem comigo e depois logo se verá. Temos quartos suficientes em casa, poderá utilizar um deles – disse, sem arrogância.

 

Nazamba olhou para ela e sentiu-se grata, afinal a hospitalidade da sua terra ainda existia.

Lembrava-se de como os estranhos eram recebidos na casa paterna e tinha uma vaga mas grata recordação dos caixeiros viajantes, homens de carrinhas carregadas de bugiganga diversa, tecidos, e sabe-se lá mais o quê, sempre faladores, sempre bons acompanhantes para o lazer e o beber. Perante olhares atónitos e de expectativa, sobretudo os das mulheres, não só atiravam para cima do tampo do balcão das lojas as quinquilharias e os tecidos garridos, os fatos de material duvidoso que só mesmo o isolamento do mato fazia comprar, como igualmente desembrulhavam todas as notícias de outros lugares, de outras gentes, e transcreviam cena por cena os filmes que haviam visto quando passavam em locais a que chegava o cinema ambulante.

 

Era gente que remetia ocasionalmente os matuenses para um outro mundo, o da ilusão, o do fantástico, o dos sonhos onde viagens inconcebíveis acabavam por ter lugar logo ali e então, ou no recôndito dos lençóis à hora que precedia o adormecer, com o pensamento em divagações de aventura e portento.

 

Leia este tema completo a partir de 11/04/2011

 



09/04/2011
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