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Coluna de Manuel Fragata de Morais - A prece dos mal amados - CAPITULO UM - O INICIO DO MUNDO

Coluna de Manuel Fragata de Morais - A prece dos mal amados - CAPITULO UM - O INICIO DO MUNDO

A imaginação foi sempre
O húmus do jardim de Clio.

(Alberto da Costa e Silva)


O céu escureceu rapidamente coberto por extensas nuvens negras e as copas das árvores vergaram-se, ondulantes, às danças macabras do vendaval. Aos pios das aves foragidas que nelas procuraram refúgio e abrigo, juntou-se o detonar seco e metálico do primeiro trovão, que ribombou transformado eco sinuoso em cavalgada desabrigada pela lonjura do infindo.

Nas ruelas da aldeia correu gente aos gritos, mães assustadas em busca dos bedelhos desgarrados. Afoitos, os homens guardaram nas choças pertences vários como puderam, enquanto os mais jovens pularam ruidosos, encantados pelo aguaceiro que sobre eles principiara a tombar, no velho ritual das cabriolas de alegria e dos gritos de prazer ao ameno flagelar da água sobre seus corpos luzidios.

Na cabana principal, sentado numa cadeira de madeira avermelhada, meio escurecida pelos fogos do braseiro, Juba de Leão, o soba grande, sorriu melancólico e cuspiu o tédio para o chão de terra batida, após as baforadas que tirou à mutopa quase apagada, em serena apreciação do fumo a invadir-lhe o peito, num calor antigo e familiar. Agarrou na cabaça da cerveja de milho, levou-a lentamente aos lábios e sorveu até se sentir satisfeito. Pela porta entreaberta percebeu as bátegas da chuva, que lhe pareceram minúsculas flechas de ferro a entranharem-se pelo solo com gritos prenhes de exultação. Anestesiado pela bebida e pelo odor penetrante da terra molhada, suas pálpebras baixaram sobre o mundo que o rodeava e tombou adormecido, a cabeça a pender sobre o peito, enrugado como casca de embondeiro carcomido pelo tempo.

Teria nascido no início do século, não sabia ao certo o ano, agora que se tornara ancião dera para falar muito de campanhas de grandes reis contra os brancos. Lembranças onde as lendas se fundiam nos factos e nos mitos, remando entre raios, trovões, cataclismos, transfigurações, metamorfoses e aparições inopinadas que levaram o branco que procedia à ocupação militar das terras, a perseguir exércitos de guerreiros invisíveis, imunizados contra o trovejar da sua artilharia. Desiludido, prisioneiro do poder da tradição, das suas leis e regras, incapaz de vencer a barreira do tempo, sentindo-se responsabilizado pelos desaires dos antepassados, das guerras perdidas, das rendições incondicionais, da subjugação abjecta à arrogância forânea, resmungava que nunca se extirparia por completo a erva daninha do bojo da boa, haveriam de medrar sempre juntas como irmãs gémeas, já vira muitas luas ir e vir, mais do que as estrelas que existiam nos céus, ele bem sabia. E quando as crianças o ouviam, abriam as bocas em espanto e descrédito.

Mais luas do que as estrelas que há nos céus? O nosso rei é poderoso!

Da cabeça pendida, a baba escoava-lhe peito abaixo. Em estupor, o corpo sacolejava ocasionalmente e a mão esquerda afastava, pelos gestos que desenhava no ar, sombras invisíveis, fantasmas e receios ancestrais que o açoitavam desde que apareceu o sonho repetitivo e desvairado, no qual uma serpente inimaginável, lançava sobre ele línguas bifurcadas que sibilavam de duas cabeças, macho e fêmea, os netos abandonados, desterrados por sua ordem, filhos de um dos que viera do mar, e com o qual havia estabelecido pactos de conveniência, solidificados pelo sangue.

E que tão cedo a hora da independência se vislumbrara, com o anúncio do fim da dominação colonial através dos acordos assinados, mandou espalhar pelas aldeias até onde o seu poder se estendia, que os mulatos teriam que ser entregues ao pai, e as mães que com eles quisessem ir que partissem.

Leia este tema completo a partir de 09/05/2011

 



08/05/2011
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